Nota de repúdio da CIPE-PI
30 de junho de 2023AMB divulga nota oficial sobre morte do cirurgião pediátrico Eduardo Guimarães Melo
10 de julho de 2023A CIPE, através desta carta, gostaria de responder, de forma construtiva e civilizada, através do diálogo, à manifestação deste sindicato a respeito de reportagem veiculada no portal GP1 com relação ao triste caso de Dr. Eduardo Guimarães Melo.
Vocês estão certos. E também estão errados.
Estão certos, pressupostos básicos do jornalismo foram cumpridos. Trata-se de uma notícia sem mentiras, trata-se de um fato de interesse, a manifestação do lado de nosso colega foi incorporada, embora tardiamente.
Mas estão errados também. Notícias curtinhas, impactantes e pouco profundas podem ser um problema grave. Argumentamos aqui, talvez tardiamente.
Primeiro porque imprensa é fundamental para a democracia, e deve ser a melhor possível para cumprir esta função. Depois, porque notícias sobre casos mal sucedidos e, incrivelmente, bem sucedidos também, têm feito um enorme mal à medicina e aos médicos. Medicina não é feita de protocolos à venda e resultados garantidos, é feita de pessoas tratando pessoas. As que tratam são tão gente quanto as que são tratadas. Sofrem também. Ser chamado de assassino é uma dor imensa para alguém normal. É uma dor pior para alguém que nem em seus piores pesadelos desejaria esta morte. E pode, sim, comprovadamente, levar ao suicídio.
Medicina contém incongruências, imprevisibilidades, riscos, individualidades. Contém a chance de fracasso, e fracasso pode ser morte no nosso caso. Medicina tem mais zona cinzenta do que preto e branco.
Nosso colega foi indiciado por homicídio culposo. Tradução: vai ser investigado num processo porque um inquérito inicial, conduzido por um delegado de polícia, certamente tão entendido em questões médicas quanto qualquer pessoa leiga instruída, sem a participação de nenhum elemento probatório ou dados provenientes de peritos, por enquanto. Sem ampla defesa. As palavras, sempre elas, fazem muita diferença. Faz muita diferença para um profissional, que, inclusive, vive de sua credibilidade, seja apresentado como um potencial assassino de crianças, e não como um médico que teve um problema que vai ser investigado.
A imprensa, de forma geral, sempre é extremamente receptiva com as potenciais vítimas de problemas médicos e eventualmente as destaca, emoções à flor da pele. Compreensível. São vítimas, mesmo quando não houver culpa do sistema de saúde. São mais frágeis, em tese, do que os profissionais, estão doentes, precisam se submeter a um poder maior, de quem sabe tratá-las. São notícias comoventes, são tragédias. Pessoas leigas, acostumadas a uma visão de medicina moderna sempre tendem a achar que se algo deu errado algo foi feito errado. Pena que não seja assim, continuamos tendo limites, o ser humano continua tendo a vida finita.
Ainda assim, alguém razoável acha que um médico normal convive tranquilo com fracassos que envolvem sequelas? Uma pessoa normal conviveria facilmente com isso? Algum profissional deixaria de se preocupar com as consequências de algo assim? Não, certamente não.
Mas isso não é nunca considerado. É mais fácil, mais rápido, e provavelmente mais eficiente como estratégia de criar atenção a uma notícia usar o cliché vítima-malfeitor poderoso indiferente. Foi descrita a síndrome da segunda vítima, que considera as consequências de tragédias com pacientes para os médicos. É grave, diretamente relacionada a suicídios, burn-out e abandono do trabalho. Os últimos dados disponíveis sinalizam que a taxa de suicídios entre médicos é dez vezes maior que a da população geral.
Há situações extremas todos os dias no nosso trabalho. A medicina alcançou progressos incríveis, enormes. É verdade que diminuímos as chances de fatalidades ao extremo. Mas elas continuam existindo. Fatalidades raras não são fatalidades inexistentes. Algo que tem um risco de 1 em mil vai acontecer, quando houver a necessidade de atuar mil vezes. E há coisas muito comuns. Apendicites. Acessos venosos centrais, o caso que aconteceu com Eduardo. Num hospital de grande porte do Brasil que atenda pediatria são colocados em torno de 8 acessos venosos centrais cirúrgicos por semana. As pessoas (inclusive jornalistas) lêem risco de 0,1%, baixíssimo, não deve ocorrer. Nós lemos “problema possível, cuidado”.
Para a paciente que – infelizmente – faleceu neste caso triste, o procedimento era questão de vida ou morte. Ela não sobreviveria sem ser submetida ao procedimento, ela precisava correr o risco do procedimento. Que não era pequeno, no caso deste tipo de cateter, no caso de uma criança pequena e muito doente. Isso é uma ponderação importante, que não apareceu.
Uma questão complexa pode ter uma resposta simples – e errada. Um posicionamento jornalístico regrado e formalmente correto pode ser uma agressão e um risco de vida sim, infelizmente, quando submete uma pessoa em estado de sofrimento à execração pública. Da mesma forma que uma cirurgia de rotina pode complicar.
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
(José Saramago)